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sábado, 23 de junho de 2012

A alma do negócio




Minha empresa ia de vento em popa. Na verdade, ela não era minha. Era o diretor de vendas, não o dono. Mas como todos aprenderam no treinamento, devemos sempre nos sentir um pouco donos de onde trabalhamos. Sendo assim, tanto eu quanto todos da empresa intitulávamo-nos possessores da empresa, que foi fundada pelo menos dez anos antes do funcionário mais antigo.

Eu, como diretor de vendas, aprendi muitas coisas.  Aprendi a valorizar mais as embalagens dos produtos. Pois, como aprendi no treinamento, quanto maior a embalagem, mais o meu consumidor se interessaria. Também aprendemos a nos apropriarmos do nosso público: meu consumidor.

É certo afirmar que não vi meu filho crescer. Mas orgulho-me de colocá-lo no melhor colégio da cidade. Também é certo afirmar que eu e minha mulher já não tínhamos o mesmo relacionamento. Mas o crédito do cartão a deixava muito bem entretida. Quando a mim, a agenda que o Tavares me comprou e fez questão de anotar os principais nomes das garotas que caminhavam pela avenida mantinha-me um bom reprodutor. Conhecia todas e todas sabiam meu cargo e minha importância na empresa.

Deixei de ser um homem emotivo. Só exagerava meus sentimentos ao ver o comercial da minha empresa na televisão. Certa vez passou até no intervalo do jogo. Senti que minha empresa era importante e meu público a respeitava cada vez mais. Minha empresa ia de vento em poupa.

Minha saúde, entretanto, havia piorado. A responsabilidade que me era exigida me deixava um pouco mal. Minha pressão arterial havia subido.  Meu casamento já estava debilitado há um bom tempo. Na última terça feira minha mulher pediu o desquite. Ela disse que não queria mais dormir ao meu lado exatamente dezessete minutos antes de eu entrar no meu turno extra. Disse a ela que teria que trabalhar e depois conversaríamos sobre aquilo.

Meu turno extra foi terrível. Sentia meu peito contrair-se. O escritório estava muito barulhento. Ouvia as cadeiras rangendo, ouvia Tavares falando sobre custo benefício, leis de administração. Ouvia a risada das pessoas. Eu tremia.

Você tá bem, amigão? Era Tavares. Ele era meu superior e meu melhor amigo. Nossa empresa devia muito a nós. Tudo bem, Tavares, só um pouco cansado. Meu amigo, vou lhe falar o seguinte: faz três anos que você não tira férias. Eu vou preparar sua papelada no RH e a partir de amanhã, considere-se livre. Tavares sorriu, apertou minha mão e virou-se de costas.

Dormi na pousada com Vanessa, um dos nomes do meu caderninho. Não fiz nada, apenas dormi com ela, paguei com meu dinheiro e fui para a minha casa as sete da manhã. Minha mulher estava de malas prontas, esperando o taxi. Ela disse que eu não havia dormindo em casa. Ela estava indo embora. Mas e nosso filho? André já está me esperando no apartamento novo. Vou embora.

Os quatorze dias que passei de férias foram em casa, bebendo, assistindo tevê e planejando minhas planilhas para quando voltasse ao trabalho. E fiz planejamentos maravilhosos, progressões de custos e investimentos, reaproveitamento de mão-de-obra. Ficou incrível. Quando voltasse, minha empresa avançaria ainda mais.
Na minha primeira segunda feira de volta ao trabalho, antes mesmo de chegar à minha mesa, Tavares me pegou pelo braço e me levou à sala dele. Meu amigo, como você está? Melhor? Sua pressão está normal agora? Sim, Tavares, mas o que você quer? É que nosso diretor chefe falou sobre você e sobre sua condição física e... E o quê, Tavares, desembucha. E achamos melhor afastar você de suas funções em nossa empresa. Já contratamos um substituto para seu cargo. Substituto, não... substituta. Vanessa tem um ótimo currículo, certamente vai lhe substituir muito bem, não se preocupe. Vanessa, pode entrar.

Olhei para Vanessa, completamente perdido. Era a mulher do meu caderninho, que Tavares anotou especialmente para mim. Olhei para minha pasta, com todos os planos para minha empresa crescer ainda mais. Olhei para Vanessa novamente, a minha prostituta. Eu não acreditava. Meu peito contraiu-se, novamente. Levantei, peguei meu carro e fui direto ao supermercado. Eram nove horas da manhã. Comprei o maior produto que minha empresa vendia, vinha embalado em uma caixa e, dentro da caixa, um grande saco de plástico o envolvia. Comprei o produto, dirigi-me ao estacionamento e saí do mercado. Olhava para a caixa com o nome da minha empresa. Fui ao dormitório. Pedi um quarto, entrei com o produto. No quarto, liguei a televisão bem alto e, caoticamente, rasguei a embalagem e abri o saco plástico. Retirei o produto. Lembrei sobre a reunião de aprovação daquele produto. Lembrei de todos os corantes, conservantes e glutamatos presentes naquela receita. Lembrei-me da mãe que processou nossa empresa pela terrível alergia que seu filho contraiu. Lembro-me da indenização e do rosto do moleque, completamente manchado por brotoejas. Coloquei o saco plástico na minha cabeça e apertei muito. Nunca havia forçado nada contra mim. Nunca fiz mal para mim. Apertava mais forte, o ar começava a faltar, sentia meu rosto corar. Começou o comercial da minha empresa. Eu apertava ainda mais forte. Muito forte. Vomitei e caí na cama. Afogava-me com meu próprio vômito, era terrível. Tinha a impressão que meus olhos saltariam para fora do meu crânio. Morri ouvindo o slogan da minha empresa, na tevê: fazemos o melhor para você.
5 Somos Bem Normais: A alma do negócio Minha empresa ia de vento em popa. Na verdade, ela não era minha. Era o diretor de vendas, não o dono. Mas como todos aprenderam no ...

Um comentário:

  1. "Fazemos o melhor para você", sempre! Terrível realidade de um funcionário cachorro(palestras motivacionais do Daniel Godri).

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