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terça-feira, 14 de maio de 2013

O homem vivo


A minha primeira vez foi aos 18 anos. Eu estava sozinho em casa, meus pais saíram pelo dia todo. E assim foi: ao passo que a porta bateu, fui para a cozinha. Tirei o lacre do gás, direcionei a mangueira para meu rosto e respirei o butano o mais profundamente que pude. Sobre a mesa do jantar, uma longa carta, distribuindo justificativas, culpados e uma série de martírios aos meus próximos e a mim mesmo. Acordei no hospital. Meu pai estava muito bravo e consternado. Minha mãe aos prantos.

Aos 21 eu tentei novamente. Levei comigo uma lata repleta de pedaços de lenha e papeis e queimei tudo, trancado no banheiro. Em cima da pia, uma carta com justificativas, desculpas aos meus próximos e a mim mesmo. Acordei no hospital. Foi assim que desenvolvi uma asma gravíssima e crônica, obstrutiva. Uma vida de nebulizações, Berotec e corticoides me aguardava.

Com 24 anos eu conheci minha esposa. Ter ela comigo me ajudou muito. Ela era extremamente carinhosa e prestativa, sempre me auxiliava nas inalações e nos remédios. Isso me dava uma força incrível.

Um dia antes do meu aniversário de vinte e sete anos ouvi ela falando com a sua mãe no telefone. Ela falava baixinho, mas eu sempre tive uma audição impecável. Ela sussurrava, chorosa, que estava bem, mas muito cansada. A vida dela estava muito difícil. Ao voltar para o quarto, me olhou e sorriu, com uma expressão triste e exaurida, os olhos fundos à procura da máscara de inalação.

Entrei no banheiro com um bilhete de desculpas, que coloquei sobre a privada. Com a faca que a minha esposa usava para cortar os tomates da salada eu rasguei meu pescoço. Consegui romper minha artéria maior. O sangue jorrava alto e eu me sentia profundamente aliviado.

Quando despertei, num leito do hospital, vi minha mulher sentada ao lado da maca: estava com os cotovelos apoiados nas coxas, a sua cabeça segurada pelas palmas das mãos, olhando para o chão. O médico falou que você cortou suas cordas vocais. Você perdeu a sua fala, ela me disse. E tinha razão. Eu queria pedir desculpas, queria dizer que a amava e que isso nunca mais iria acontecer, mas não conseguia. Tudo o que saia da minha boca eram balbúcios e um ar fanho angustiante. Vou chamar o doutor, ela disse, séria, logo eu volto.

Eu nunca mais ouviria a minha voz. Nunca mais poderia dirigir uma palavra à minha mulher. Eu te amo, tantava falar, me desculpa, tentava falar, e nada acontecia. Só aquele ar agonizante saindo da minha garganta. Era o fim. Arranquei o soro da minha veia e o aparelho de traqueostomia da minha goela. Pulei de costas, rápido, de olhos fechados. Minha audição, ainda impecável, me fazia ouvir o barulho do hospital do lado de dentro.

Fraturei algumas vértebras, minha espinha quase quebrou em duas partes. Era o segundo andar, o médico disse, sorte que não é muito alto. Você está tetraplégico. O único problema, ele disse, é que além de você não mover mais os membros superiores e inferiores, você perdeu, por algum motivo, a atividade das suas glândulas lacrimais. Vou passar um colírio para a sua mulher aplicar em você. Mas tem que aplicar várias vezes ao dia, tudo bem?

Passamos dias no hospital. Eu não conseguia falar nem me mover, mas ainda assim participei ativamente das instruções que as enfermeiras passaram para a minha mulher sobre como me dar banho, me levar fazer minhas necessidades, limpar meu ânus, me alimentar, me manter distraído. Passamos por um psiquiatra que me receitou um remédio para ansiedade.

Isso foi aos meus vinte e sete anos. Há vinte anos estou assim: não movo as pernas, coxas, pés, braços, antebraços, mãos, dedos, bacia. Também não falo e, por causa disso, nem quero mais abrir a minha boca. Apenas para comer e tomar os remédios. E por causa das minhas glândulas lacrimais, eu não choro há vinte anos. Eu seguro minhas lágrimas há vinte anos mas a minha audição continuava impecável. Ouvia minha mulher, que sempre fez questão de me cuidar muito bem, no telefone com algumas amigas. Ouvia minha mulher assistindo à televisão no outro cômodo, ouvia as abelhas querendo entrar pela janela. Tudo isso de portas fechadas.

Uma tarde a minha mulher abriu a porta do apartamento. Alguém entrou e ela falou baixinho: não faça barulho, ok? E alguém entrou pela porta do apartamento. Minha mulher e alguém entraram no outro quarto, fecharam a porta. Eu comecei a ouvir gemidos, suspiros, pequenos tapas. Ouvi a minha mulher falar: me bate. Ouvi a minha mulher soltar um suspiro maior, mais alto, aliviado. Ouvi minha mulher fechar a porta do apartamento, ir ao banheiro, entrar no meu quarto e me falar, com seus olhos fundos à procura da minha máscara de inalação: eu vou cuidar de você até o fim da minha vida, meu amor. Eu não pude respondê-la.
 
5 Somos Bem Normais: O homem vivo A minha primeira vez foi aos 18 anos. Eu estava sozinho em casa, meus pais saíram pelo dia todo. E assim foi: ao passo que a porta...

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