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quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Viver é bom




Geraldo era um bom homem. Gerente administrativo de uma companhia multinacional, trabalhou muito para alcançar este cargo. Formou-se, cursou duas pós-graduações e sempre manteve a dedicação máxima em sua vida profissional. Seus pais, ainda vivos, se orgulhavam de sua vida. Contavam aos vizinhos e outros parentes sobre a trajetória de glória do menino tímido e magro que ultrapassou muitas dificuldades para chegar onde chegou.

Além de seu ótimo panorama profissional, Geraldo constituiu uma família bastante sólida. Era casado com Rita e com ela tinha dois filhos, o Lucas, de quatorze anos, e a Mariana, de treze. Rita casou grávida. Foi uma grande festa. Um ano depois, veio o segundo filho, uma linda menina. Geraldo e Rita tinham uma vida sexual razoável, embora os amigos do bar sempre alertavam o homem que após um tempo, todo e qualquer relacionamento perde seu tempero, sua emoção. E as coisas tendem a se estagnar.

E assim foi. Era inevitável, pensava Geraldo. Tudo bem. O homem, hoje calvo e gordo, havia se acostumado com isso. Sabia que Rita há muito perdera a libido (seus problemas com lubrificação sempre foram uma constante) e Geraldo não via mais grandes excitações em sua esposa, hoje com o corpo prejudicado pelo fumo e constantes depressões.

Sua vida havia mudado bastante no último ano. Geraldo acordava todas as manhãs, raspava seu rosto, vestia a camisa, a calça, a gravata, as meias, o sapato. Tomava café. Quando seu rosto se encontrava com o de Rita, ambos fechavam os olhos. As crianças raramente estavam presentes. Ou na escola, ou com os amigos, ou trancafiados no quarto. Sem problemas. Geraldo sabia que isso era normal e até melhor: melhor estarem lá do que aqui, me vendo.

Geraldo parou de jogar futebol há oito meses. Não assistia mais televisão. Não se masturbava há tempos. O trabalho está me matando, dizia constantemente. Você que quis isso, Rita respondia enquanto jogava os pratos e talheres na pia de louças. Ela havia se tornado uma mulher muito séria. O cigarro lhe fez duas covas nas bochechas, seu rosto se encaminhava para um formato cadavérico. E Geraldo apenas consentia.

Uma manhã, no trabalho, Geraldo estava sentado em sua mesa, com os olhos fixos ao computador, redigindo memorandos, documentos e planilhas financeiras. Ele escuta risadas do pessoal da frente. Ergue os olhos para verificar, todos se calam. E voltam com pequenas risadas. Ao lado, um estagiário o encara, preocupado. E lhe entrega um bilhete: Senhor Geraldo, em sinal de respeito a você, devo denunciar – aqueles homens estavam fazendo piadas sobre você e sua mulher. Você deve tomar uma atitude. Att, nome do estagiário. É provável que o menino queria apenas se inteirar na empresa, chegar mais perto do “chefe”, como ele mesmo fez há vinte anos. Geraldo continuou trabalhando sem olhar para os lados. Mas percebia sua mesa e uma série de papéis se acumulando. Ouvia o telefone gritar, ouvia pessoas gritando, ouvia o ar condicionado. Tirou as mãos do teclado do computador. Olhou para os lados,  via seus colegas de trabalho. Via homens e mulheres saudáveis, mantendo-se limpos e cheirosos, apresentáveis. Afinal, trabalhavam em uma empresa muito grande. Os produtos eram consumidos em todo o mundo. Todos eram muito importantes. E Vanessa, secretaria do setor de marketing, chega à sua frente: Senhor Geraldo, foi mandado fazer um button para cada funcionário dessa empresa. Convidamos o senhor a usar também. Geraldo olhou o pacote, olhou as peças. Pegou um dos buttons, leu o que estava escrito: eu amo meu trabalho, eu amo minha vida, eu amo a minha empresa. Vanessa havia lhe falado que fazia parte de uma campanha motivacional que a empresa estava promovendo para dar um “gás” nos colaboradores, motivá-los. Geraldo olhou para Vanessa e pregou o button em sua camisa. Está bom assim? Esta frase saiu automática da boca de Geraldo. Está ótimo, senhor.

E Geraldo chegou em casa às sete e quinze da noite. Rita estava servindo uma sopa. Estranhamente, todos estavam sentados, a mulher, as crianças. E Geraldo sentou. Todos em silêncio. Durante quase toda a janta só se ouvia o tilintar dos talheres e o barulho dos lábios sugando o caldo amarelado. E algumas baforadas. Lucas mexia suas pernas constantemente, Mariana estava ouvindo música com seus fones. Rita parecia trêmula e séria. Com a iluminação da mesa de jantar, suas covas pareciam ainda mais fundas. Mariana olha para o button que o pai estava usando e esqueceu de tirar. Começou a rir baixinho. Lucas, com suas pernas ansiosas, olha para o homem e pergunta: Como foi o dia,  pai? Ah, filho, foi um dia terrível... e foi interrompido por Rita, que o olhou e disse: É sempre terrível. Seus dias são sempre terríveis, você está todos os dias terríveis, tudo está ruim para você, sua vida, seu trabalho, eu, as crianças. Essa sopa, aposto que você está achando um lixo. Você sabe disso. E Mariana, com os fones de ouvido ainda mais fundos, começava a cantar alto. Lucas apenas tomava sua sopa com suas pernas inquietas. Rita expurgava suas frustrações em cima do homem. Geraldo se sentia pasmo. E esgotado, como nunca antes. Não conseguia esboçar qualquer resposta, qualquer chance de manter a paz naquela mesa. Suas mãos formigavam, seu peito começava a doer. Sentia que sua cabeça iria explodir, mas seu peito estava doendo mais e mais. O homem se levantou, olhou para todos e começou a gritar. Gritar qualquer coisa sem sentido. Seus olhos se enchiam de lágrimas e seu peito doía. A sensação súbita de que uma lança atravessara o peito do homem o fez cair no chão brutalmente.



Geraldo conseguia ouvir vozes, conseguia ouvir sua mulher falando algo, as crianças. Vozes desconhecidas,  ouviu sua mãe. Seu pai. Pensou, estou morrendo, morri, devo estar no meu velório, ou enterro. Que baboseira. Geraldo não sabia onde estava, não conseguia falar, não conseguia abrir os olhos. E muitas coisas passavam por sua cabeça. Muitas lembranças, sua infância, sua escola. Lembrou de Eduardo, seu colega no colegial. Seu olhar, suas mãos. Ele praticando educação física. Geraldo lembrou de tudo o que havia enterrado há quatorze anos. Eduardo foi o maior caso de amor de sua vida, nada poderia superar. Agora Geraldo se sentia mais leve. E feliz. Estava abandonando tudo, sua mente só girava em torno daquele garoto e do amor mais puro que já pode viver com alguém. Aquilo era o seu paraíso. Ele realmente amou Eduardo, como nunca amou ninguém. Desde as brincadeiras inocentes às idas no banheiro masculino do colégio. Pensou, obrigado, Senhor. E vozes voltaram a aparecer. Era uma voz desconhecida. É Eduardo, vindo me resgatar disso tudo. Viajaremos juntos, viveremos juntos daqui para frente. Sentiu uma mão no seu ombro. Abriu os olhos. Era o médico, Dr. Osvaldo. Ao fundo, sentada, Rita e suas covas fundas. As crianças ao seu lado.  Doutor Osvaldo olhou para Geraldo e disse: bom dia, senhor Geraldo. Que susto você deu em sua família, que tanto te ama. Viver é bom, não é?

Geraldo fechou os olhos novamente.
5 Somos Bem Normais: Viver é bom Geraldo era um bom homem. Gerente administrativo de uma companhia multinacional, trabalhou muito para alcançar este cargo....

3 comentários:

  1. Interessante o ponto q você coloca sobre a vida sexual do casal, como as coisas acontecem e o final surpreendente.

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  2. Geraldo é o típico homem morto/vivo, conheço muitos iguais a ele.

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