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sexta-feira, 7 de junho de 2013

Eu já almocei um ovo



Eu estava no almoço de negócios da empresa. O chefe, o gerente, o chefe do chefe, quietíssimo, um chefe da filial de outro país e eu. Todos engravatados e de banho tomado. Todos bonitos. A barba feita (eu me cortei no queixo, mas não aparecia). Todos simpáticos, falando sobre o futuro do país, do mundo, nossa economia, o progresso, as importações. Somos cinco homens engravatados e de banho tomado, bonitos. O garçom, bonito, aparentemente de banho tomado e engravatado (borboleta) nos traz uma bandeja repleta de carpaccios: polvo, shitake, pêra, salmão, shimeji, haddock. Eu nunca tinha visto tantos carpaccios na minha vida. Paramos um pouco de falar dos assuntos interessantíssimos e importantíssimos a todos e nos voltamos aos pratos sobre a mesa. O chefe, olhando exaltado para as iguarias, atacou o carpaccio de polvo. Comeu. Balançou a cabeça para os lados. Atacou o shitake. E depois o shimeji. Mexeu os lábios para baixo. Pêra, salmão, haddock. Mastigou e falou: esses carpaccios estão uma merda. Todos eles. Será possível? Num restaurante desses, de primeiro mundo, me servem isso? Em paris eu comi muito melhor. Na Itália eu não daria isso nem para um mendigo. Que absurdo. Arrumou sua gravata e mastigou mais uma garfada de shitake.

Eu já almocei um ovo, pensei. Eu era pequeno e eu não tinha nada além de um ovo cozido para o almoço. ‘Miserê’, minha mãe falava, sacaneando a língua francesa. Ovo cozido, sal e um copinho de água. Dividi o ovo com a minha mãe e fui brincar. Agora eu estava aqui. O chefe reclamou dos carpaccios. Vamos terminar o almoço e trabalhar. Mas não esqueço: ele não daria aquelas comidas nem para um mendigo italiano. Despertei da minha introspecção quando o chefe bradou (a boca cheia de salmão mastigado, como o vinho faz efeito nesses homens): para o nosso país ir pra frente essa pobretagem tem que morrer. Todos para a puta que pariu. Esses desgraçados. E eu acabei mudando de ideia: Perdão, senhores, mas não estou me sentindo bem. Vou ali fora respirar um pouco. Me desculpem. E fui para fora do restaurante. Restaurante, não: vie magnifique restaurant. Liguei o carro e fui para casa.

Vie magnifique restaurant, boa tarde?”. “Boa tarde. Vocês fazem encomendas para festas? Eu realizarei um petit-comité esta noite e gostaria de uma boa quantidade e variedade de carpaccios. Quais vocês dispõem? Você pode preparar uma porção completa de cada? Eu preciso para às 16 horas. Pode ser? Quanto custa? Eu mesmo vou buscar. Em dinheiro. Obrigado.”

Tomei outro banho. Coloquei uma roupa mais confortável: camisa, calça, tênis. Fumei um cigarro e depois outro cigarro. Quase quatro, o tempo passa voando mesmo (quanto tempo desde que eu almocei um ovo? Quase esqueci).

Liguei o carro e fui ao restaurante. Carpaccios custam uma fortuna.

Com um chefe falastrão a empresa inteira sabia seu endereço. De cor. No meu bairro a minha casa é a melhor: azul, linda, grande portão branco. E o bairro é tão seguro que eu não preciso gastar com dois negões pra me proteger. Também tenho um revólver guardado no criado mudo. Que chefe não teria? Minha mulher me mata se souber. A empregada vai às segundas, quartas e sextas.

Era quinta feira. E não foi difícil chegar na sua casa. Nem entrar.

Toquei a campainha, com a maleta cheia de carpaccios na mão, ela atendeu o interfone: olá, eu disse, e disse meu nome. Trabalho com seu marido e vim buscar uma camisa reserva para ele. Ele deixou um pouquinho do carpaccio de salmão cair. Uma pena.

Entre, ela disse. Voz simpática, pisciana.

Entrei, disse olá, tirei a faca do bolso da calça e falei: vamos para o quarto. Ela se desesperou. Tadinha. Mas como reagir à minha faca apontada? Fomos para o quarto, ela soluçava. Tadinha.

Deita na cama. Que hora seu marido chega?

Chorava tanto que não conseguia responder. Depois de um minuto, me disse. Oito horas.

Eu vou ter que amarrar você. Se você tentar reagir, me machucar, me morder ou impedir qualquer coisa, eu vou passar essa faca de fora a fora na sua garganta, está bem?

Ela não reagiu um momento sequer. Tão submissa. Tadinha.

Eram quase cinco horas. Eu tinha três horas e pouco para esperar o meu chefe. Peguei a arma no criado mudo. Estava carregada com três balas.

Tem ovo na geladeira?

Sim. Ela não parava de chorar e tremer. Olhava pra arma.

Posso fumar aqui dentro do quarto?

Não.

Desculpa, vou ter que fumar aqui dentro. E acendi um cigarro. Três, quarto. Foram oito cigarros até às sete e pouco. E ela não parava de suspirar e chorar um minuto sequer. Enquanto esperávamos, ouvi dezessete vezes a frase ‘o que você quer comigo’, oito vezes a frase ‘me solta’ e duas vezes a frase ‘você quer me estuprar?’. Foi um pouco desgastante.

Quase oito horas. Agora a luz do quarto estava acesa, as mãos da mulher do meu chefe estavam roxas. Ouço barulho do portão abrindo. Se você gritar teu marido vai te encontrar com a cara toda estrebuchada, entendeu?

O carro entrou na casa. A garagem ficava no andar sob o quarto do casal. O maridão entrou. Assoviando. Chamou: amor? Sussurrei: quietinha. Amor? E quando ele chegou ao quarto, lá estávamos: ela, amarrada, chorando (é claro) e eu com a Taurus na mão. Entra, gordo, senão eu te arrebento.

A cara de criança mimada assustada do meu chefe era impagável.

Ele gritou: o que você fez com a minha mulher? Seu merda! Seu monstro!

Não fiz nada. Agora senta, senão eu mato os dois.

Você está bem, meu amor? E ela gemeu um sim entre o choro.

Eu abri a maleta. Meu chefe estava se cagando de medo, eu juro. Podia sentir o cheiro de intestino rico.
Abri a maleta e despejei os carpaccios ao lado dele, na cama. Agora come. Tudo. Eu vou ficar assistindo aqui.

O desespero falou alto: O chefe enfiava as mãos no alimento (um amontoado de manga, salmão, shitake e outras coisas) e levava à boca, mastigava sonoramente, engolia seco. Vi ele fazer isso muitas vezes. Contei: vinte e sete bocadas naquela mistura.

Vou ter que te amarrar agora.

Peguei a corda do bolso da mala, encostei a pistola na testa do meu chefe e amarrei ele do lado da mulher. A cena estava muito bonita, quase: a mulher, branca, pálida, mãos e pés roxos, toda lacrimejada e o seu marido, gordo, de terno e gravada, camarão grudado na camisa, os dois desesperados. Amarrei ele muito bem.

Desamarrei a mulher. E aí ele começou a gritar. Engatilhei a arma e falei baixinho: quietinho, senão vamos ter que sujar as paredes. Peguei a mulher do meu chefe e fomos para a cozinha.

Com uma mão na arma apontando para ela, abri a geladeira, tirei um ovo. Abri a porta do armário, tirei uma chaleira e enchi de água. Liguei o fogão (automático, ótimo) e joguei o ovo dentro da chaleira.

Onde fica o sal?

Ali, ela apontou, quase inanimada.

Tirei o sal da prateleira, abri.

Esperei o ovo cozinhar. Joguei na pia, joguei água fria. Comecei a descascar (com as duas mãos, deixei a arma do lado). Coloquei no prato. Parti no meio, coloquei sal.

Vamos comer agora.

Ela me olhou incrédula, levou a metade do ovo na boca pálida. Mastigou, seca. E eu também mastigava enquanto falava pra ela: você sabia que um dia eu já almocei um ovo?
5 Somos Bem Normais: Eu já almocei um ovo Eu estava no almoço de negócios da empresa. O chefe, o gerente, o chefe do chefe, quietíssimo, um chefe da filial de outro país e eu. To...

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